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Ciclo viciante: comer ou jogar na locadora?

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Nem só de créditos para as horas de jogo e aluguéis de cartuchos servia a nossa mesada na locadora. Um dos maiores dilemas na hora de investir o dinheiro da semana era justamente saber equilibrar entre quanto gastar jogando e quanto gastar comendo. Pois, da mesma forma que era difícil resistir aos games novos que ficam expostos no balcão de atendimento ou nas prateleiras da loja, era igualmente complicado não desejar todos aqueles doces e salgados que enchiam de cores e cheiros a locadora.

Eterna tentação

Bastava entrar na locadora para logo sermos dominados por toda aquela variedade tentadora de coisas para jogar e comer. Várias foram às vezes em que perdi dezenas de minutos percorrendo as capas dos jogos enquanto pensava nos sabores de todas aquelas guloseimas. Não conseguia me decidir. Apenas desejava tudo.

Pois é, mãe. Bem que a senhora dizia que a locadora era um lugar do vício. Mas, também, se já não fosse o suficiente criar um comércio para vender diversão, o sujeito ainda me entope de todo tipo de doces e salgados irresistíveis.

Aquilo era um delírio para qualquer criança. Um espaço repleto de aparelhos eletrônicos, rodas de amigos, longe das obrigações escolares, sem a chatice dos adultos e, ainda por cima, com estantes cheias de pipocas, balas, salgadinhos, picolés, sorvetes, refrigerantes, biscoitos recheados e quase tudo que nossas mães evitavam comprar para nós nas feiras de domingo.

Item obrigatório

Essa oferta do que comer não era uma realidade apenas das locadoras das grandes cidades. Qualquer garagem com um ou dois consoles da geração passada, ou o quintal da casa do moleque que servia de espaço para o aluguel do seu próprio videogame traziam consigo sempre uns confeitos “Sete Belo”, chicletes “Big Big”, pipocas “bockus”, “zorros”, e até uns salgados feitos pela própria mãe. Era uma espécie de regra de criação de locadoras. O sujeito oferecia o jogo e, por tabela, algo para comer entre uma partida e outra.

Às vezes, eu tinha a impressão de que aquelas ofertas faziam parte de alguma estratégia do dono da locadora para continuar sugando o nosso dinheiro mesmo quando todos os videogames estavam ocupados. Pelo menos eu, quando precisava esperar muito tempo até algum console ficar vago, ficava olhando para aquelas prateleiras cheias de coisas deliciosas para comer, calculando mentalmente o tempo que eu precisaria para concluir a fase que eu queria jogar e se daria para sacrificar alguns minutos em prol de uma paçoquinha.

Perdi as contas de quantas vezes cheguei para jogar, todos os videogames estavam ocupados, precisei esperar, e acabei não jogando porque gastei tudo comprando enroladinhos, Guaranás Caçulinhas e aqueles horríveis chocolates do Fofão. Juro que eu tentava resistir. Porém, quando um carinha do lado comprava, parecia que alguma substância era liberada e me induzia a fazer o mesmo — algo parecido com o que acontece quando alguém boceja perto de você.

Sai pra lá, tentação

Além da própria tentação em si, que já era suficientemente complicada de resistir, o dono da locadora dava sempre aquele empurrãozinho extra para experimentarmos algo novo ou para que trocássemos os minutos finais de nossa jogatina por uma bala. Por exemplo: estava eu lá jogando Donkey Kong Country 2 no Super Nintendo, quando consigo passar, enfim, daquelas malditas fases cheias de espinhos. Resolvo parar o meu tempo de jogo, já satisfeito com a série de manobras que fiz na sorte pura, e pergunto para o dono: “Quanto tempo falta, meu amigo?”. E o cara responde: “Faltam 10 minutos, Ítalo. Dá para pegar duas paçoquinhas”. Adeus, resto de mesada.

Não satisfeito em levar os meus 90 centavos, o cidadão ainda me induz a deixar o troco com ele, investindo em paçoquinha. E era assim sempre. E com todo mundo. “Meu amigo, se eu parar agora, dá pra tirar alguma coisa para comer?”. Quase todo jogador já deve ter perguntado isso ao dono de sua locadora favorita. E aí, valia todo tipo de negociação. Completar com mais dinheiro para tirar um sorvete. Trazer o resto da grana outro dia. Tirar um “Embaré” e deixar uns minutos guardados para outro dia. O que valia mesmo era jogar, comer e se divertir muito.

Infelizmente, quase nunca dava para fazer tudo ao mesmo tempo. Por mais que eu quisesse — e quisesse muito mesmo — passar horas jogando e comendo de tudo, a situação nunca era fácil para se chegar ao ponto de viver tamanha ostentação. Comigo, as moedinhas eram contadas. Toda semana, os meus pais me davam uma mesada (pequena, mas sei que era de coração) para gastar na escola e na locadora.

Embora eu nunca gastasse nada no intervalo da escola, a quantia não me permitia jogar e comer ao mesmo tempo. Eu tinha que escolher. Ou jogava um tempinho todos os dias, ou passava o final de semana jogando, ou comprava algo para comer com os amigos.

Driblando a situação

Como a situação não era das mais fáceis, eu tentava fazer com que aquelas poucas moedas durassem bastante. Por isso, eu equilibrava entre uma partida aqui, outra acolá, um salgadinho nessa semana, um doce na outra. Eram pequenas conquistas que eu fazia questão de aproveitar. Todavia, claro, a vontade de jogar, comer, comer e jogar o dia inteiro existia, principalmente quando eu via aqueles caras mais velhos, que geralmente já trabalhavam, carregando sacos de salgados, com os bolsos cheios de balas e pacotes de biscoitos recheados, enquanto zeravam RPGs todas as semanas.

Felizmente, por um curto período de tempo, eu até consegui aproveitar um pouco mais das guloseimas da locadora. Esse tempo de “fartura” foi na época em que eu fui funcionário da locadora em que eu costuma jogar. Lá, eu podia escolher entre algumas horas extras ou comer algo todos os dias, que podia ser uma pipoca, um salgado ou um sorvete. Além, é claro, do “salário”. Mas, ainda era preciso escolher. Não dava para ter os dois. Mesmo assim, foi uma época bastante proveitosa.

Saudade

O dilema entre jogar ou comer seguiu até o fim da vida das locadoras. Infelizmente, quando comecei a trabalhar e passei a ter o meu próprio dinheiro, os meus templos da diversão já não faziam mais parte da paisagem urbana da minha cidade. Foi uma pena, pois esperei muitos anos para conseguir jogar e comer ao mesmo tempo em uma locadora.

Mas, tudo bem. Foram anos incríveis de indecisão e economia. Aposto que se tudo tivesse sido tão fácil como eu gostaria, dificilmente eu teria dado o devido valor a cada salgadinho conseguido depois de tanto trabalho dos meus pais. Ou mesmo a cada doce que consegui com as minhas horas de serviço na locadora.

Agora, vou ali fazer a feira para a minha esposa e colocar algumas pipocas, vários doces, salgadinhos e refrigerantes no meu cantinho para comer e beber enquanto jogo uns games clássicos quando eu voltar. Fazer o que eu nunca fiz na época das antigas locadoras de videogame: jogar comendo e comer jogando.


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Ítalo Chianca

Gamer que cresceu jogando com seus irmãos, lendo revistas sobre games e frequentando as antigas locadoras de videogame, hoje divide o seu tempo livre entre as jogatinas e os textos sobre games que costuma publicar no Jogo Véio e nos seus próprios livros (Videogame Locadora, Os videogames e eu, Papo de Locadora, Game Chronicles e Gamer).

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