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O dia em que o Véio comprou um Dreamcast usado

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Àquela altura da madrugada, toda a vizinhança já estava lá pelo décimo segundo ou terceiro sono, onde eu também gostaria de estar. No entanto, um sentimento de dúvida não me deixa tirar os olhos da tela: comprar ou não comprar? Estou tremendamente indeciso, como sempre estive nessas situações de prazer imediato. Sorvete de flocos ou creme? Com ou sem cobertura? Ryu ou Ken? Comprar ou não esse Dreamcast novinho em folha com um controle e cabos em bom estado? E se comprar, que jogos vou querer jogar primeiro?

A casa está toda escura, exceto pela luz do monitor que realça o brilho natural dos meus olhos, cegos pelo desejo de ter mais um filho na coleção. Um dos bons, que eu tive quando era moleque, então tem aquela carga a mais de nostalgia e de apreço. Carcaça branquinha, com canhão recém trocado e com os cabos todos em ordem direitinho.

A pesquisa já se prolongou por tempo demais e eu não posso correr o risco de acordar o resto da casa. Mas sem VMU? Como vou salvar os jogos? Não tem jeito, é um risco necessário e o preço está muito bom. Só me resta seguir em frente.

Clico em comprar e entro com o endereço de entrega. Escolho a forma de pagamento, confirmo todos os dados e em quantas vezes pretendo parcelar, tudo em um só fôlego e sem desgrudar os olhos do site. Vai que a tela some! Ufa! Agora é só esperar e ele logo estará a caminho.

Chega o e-mail de confirmação e, com ele, desce aquela carga de adrenalina e as coisas voltam um pouco a fazer sentido. Um copo d’água, um sorriso e uma pontada de satisfação. A coleção está crescendo e eu finalmente posso ter uma noite de sono tranquila.

Novamente dono de um Dreamcast

Em Publicidade a gente aprende que esse processo de compra está ligado a cinco passos importantíssimos, e que sempre acontecem, independente se você está comprando uma mariola ou um Neo Geo AES lacrado na caixa e com número de série baixo.

Reconhecimento da necessidade, busca de informações, avaliação de alternativas, compra e pós-compra. Só que quando se trata de uma aquisição extremamente passional como essa, esse circuito acaba indo pelo ralo e as justificativas são as menos plausíveis o possível: Eu preciso? Muito! Onde vou comprar? Onde tiver o melhor preço e condições, principalmente se for de uma loja especializada (essa parte a gente leva a sério). Como comprar? Sei lá, e muito menos como pagar. E o pós compra envolve um prazer moderno, acentuado pela internet e que causa um certo deleite em qualquer retrogamer que se preze: o ato da entrega, o momento de abrir o embrulho (o famigerado ‘unboxing’) e depois colocá-lo junto dos outros itens da coleção. Jogar, em alguns casos, fica apenas para segundo plano.

Quando estamos falando de um videogame antigo, é preciso entender que isso não envolve retirar um lacre e sentir o doce aroma do plástico fresco invadindo as narinas. Dificilmente o produto estará novo em folha como na época do lançamento. Se tiver uma caixa, melhor! Se não tiver, será amado de forma igual, desde que bem embalado e com plástico bolha para proteger o console das intempéries do percurso e dos maus tratos de quem transporta. Cheiro de poeira é obrigatório, principalmente se o invólucro for jornal velho. Mas como raios eu vou tirar as marcas amareladas da carcaça?

Em um rápido exercício de libertação, dou uma olhada em minha estante de jogos. Meus hábitos de consumidor se transformaram com o passar dos anos, e eu deixei um pouco de dar importância para a velocidade com a qual a indústria se desenvolve. Essa sensação de escravidão dos lançamentos, toda aquela ‘spoilerfobia’ e a sina de ter que driblar a pressa do mundo e dos jogos modernos. Tudo parte do passado. E é bom que tudo corra de uma maneira mais lenta e ritmada, com exceção da fiorino dos correios que está transportando o meu console!

A ansiedade da entrega

O código de rastreio diz que o produto chega em três dias, mas que no meu mundo de ansiedade parecem ser trinta ou trezentos, como se o redor estivesse inteiro em câmera lenta.

Um link com o passado, com todas as minhas memórias, com os melhores natais que já vivi, tudo se recapitulando de maneira pausada e gentil, enquanto assino a nota de recebimento e corro pra dentro de casa em meio a uma ansiedade desenfreada e descabida. Que se dane o unboxing, vou rasgar o papel como um leão selvagem que estraçalha sua presa!

Sai o invólucro, os fios estão todos bem conservados e no lugar, até mesmo com aquele araminho de pacote de pão de forma. Vale uma boa qualificação e recomendação do vendedor.

Ligo na tomada, meio atabalhoado e afoito, pego um CD na estante (e ele comemora, depois de anos de hiato e de esquecimento) e me sento de frente pra TV: o logo espiralado aparece, as lágrimas descem e eu me entrego de volta a um tempo que parece não voltar mais.

Vou me lembrando aos poucos dos jogos, dos botões, da sensação que aquele controle de anatomia tão diferente causa no tato e no olhar. Mas vou me acostumar bem rápido, na medida em que as lembranças forem se assentando, sejam as novas ou as antigas. Meu coração já foi postado, selado e muito provavelmente saiu para a entrega a um eu do futuro, já mais velho e talvez um pouco cinzento. Que ele saiba cuidar bem desse Dreamcast também.


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Eidy Tasaka

Eidy Tasaka

Redator e diagramador freelancer, apaixonado por jogos e revistas antigas, incentivado por um pai que sempre nutriu os mesmos vícios. Fã de RPGs japoneses e jogos de plataforma, divide seu tempo entre o Jogo Véio e as poucas horas de sono que possui.

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