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Os segredos do garoto GameShark

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Todo mundo tem um amigo ou conhece alguém que é excepcional nos videogames, conseguindo feitos que poucos jogadores são capazes de repetir. Seja por conseguir zerar Battletoads, terminar Ninja Gaiden sem problemas, ou completar Ghosts’n Goblins e Contra III sem morrer, sempre existia alguém que detonava nos videogames e, para completar, fazia questão de se exibir na locadora. Eu tive um desses amigos, e o cara era fenomenal.

A lenda

Aqui na minha cidade, nós tínhamos vários grandes jogadores, excelentes em diferentes tipos de jogos. Normalmente, cada um era fora de série em um determinado gênero. Por exemplo: tinha um amigo praticamente invencível em Street Fighter; outro que era difícil de vencer em International Super Star Soccer; um irmão duro de matar em 007 GoldenEye; e outros que detonavam um RPG atrás do outro. Mas dentre todos esses, um garoto se destacava por conseguir coisas extraordinárias em qualquer gênero.

O sujeito fazia o típico estilo de um aficionado por videogames da época. Ele era baixinho, loiro, magro, vestia shorts escuros, usava camisetas claras e óculos de grau (muitos graus, aliás) e não largava a mochila. Era daqueles que chegava quando a locadora abria e só saía quando o dono expulsava a garotada à noite, doido para ir para casa depois de uma jornada absurda de trabalho.

Até aí, ele era como qualquer outro jovem apaixonado por games que gostava de passar o seu tempo livre (que costumava ser bastante) em frente a um videogame desbravando novos mundos. Mas, bastava ele segurar um controle nas mãos que a magia começava.

Feitos de outro mundo

O que ele fazia não era desse mundo. O garoto detonava um jogo atrás do outro com habilidades sobre-humanas. Dominava o personagem, manjava de estratégia, tinha uma coordenação perfeita e parecia sempre prever os acontecimentos do jogo. Não existia game que ele não fosse bom.

Ele encontrava todos os segredos de Mega Man, tinha armas e munição de sobra em Resident Evil, ostentava praticamente todas as cartas de Yu-Gi-Oh, tinha os melhores monstrinhos em Digimon World e não falhava uma nota em Dance Dance Revolution.

Quando ele chegava na locadora, logo nos primeiros anos em que o PlayStation deslanchou como o principal console da geração, a galera parava de jogar só para acompanhar o feito dele do dia. Era um frisson só. “O maior jogador do pedaço está chegando para humilhar o videogame”, já gritava alguém de dentro da locadora. E não dava outra. Normalmente, ele pegava o jogo mais complicado e detonava, sem dificuldades. E mais ainda: fazia coisas que nenhum outro jogador conseguia.

O único

Os rumores, na época, diziam que ele era primo de um cara que tinha um amigo que trabalhava na Sony, e por isso ele teria acesso a informações únicas. Diziam isso porque essas coisas que só ele fazia simplesmente não estavam no jogo quando outra pessoa ia jogar o mesmo título depois.

Por exemplo: quando ele iniciava um novo RPG, ele tinha acesso a armas, itens e armaduras que nenhum outro jogador possuía. E eram sempre os melhores itens. Em jogos de luta, o personagem dele parecia não tomar dano. Em Digimon, para o delírio da galera, o personagem dele só digievoluia para as melhores opções, e nunca para Nunemon, como o meu teimava em fazer.

As notas em Dance Dance Revolution que ele tirava eram só perfect, nem um único great. Se alguém me contasse, eu não acreditaria. O problema é que ele fazia questão de sempre jogar com uma grande platéia na locadora.

O danado era um verdadeiro showman. Lembro de tê-lo visto fazendo manobras em Tony Hawk’s Pro Skater que geravam tantos pontos que mesmo quando ele acabava de rodopiar os pontos continuavam sendo somados por mais alguns segundos. Isso sem falar das incríveis sequências que ele fazia sem errar na música Paranoia, em Dance Dance Revolution, na dificuldade mais alta de todas. Todo mundo gritava de emoção.

O mito

Até então, tudo parecia representar pura habilidade e sorte de ter acesso a informações privilegiadas — que nos primeiros anos da década de 1990 eram bem escassas. A enorme maioria dos jogadores nesse período, pelo menos aqui na minha cidade, não tinha tanto acesso a informações e muito menos se preocupava em pensar além do simples ato de jogar.

Mas, esse sujeito não. Ele sempre andava com a mochila cheia de revistas de games, além de diversos acessórios e CDs. Ele tinha até o seu próprio controle e um Memory Card pessoal. Porém, o destaque mesmo no meio de seus “brinquedos” era um disco misterioso que ele sempre costumava colocar antes de jogar.

Você, que joga videogames desde muito cedo em grandes centros, deve estar pensando: “Essa turma era muito inocente, o segredo do cara tá na cara deles.” Sim, éramos realmente muito inocentes. E isso se deve ao fato de que praticamente nenhum tipo de informação extra chegava por aqui — só lembrando: moro no interior do Estado que é o interior de um país que é interior do mundo.

Por isso, nunca se tinha ouvido falar sobre aquele disco preto com um tubarão na capa que o jogador extraordinário usava sempre antes de jogar.

O ritual

Era sempre o mesmo ritual. Ligava o console, colocava o disco do tubarão, acessava uns menus, digitava alguns números, abria a tampa do videogame sem desligá-lo e trocava o disco pelo CD do game. Segundo ele, na época, aquilo tudo era só para acessar o Memory Card especial que ele carregava, que, na loucura dele, tinha sido enviado pelo dito funcionário da Sony que o primo dele conhecia e, para que funcionasse nos PlayStations da locadora, era necessária toda essa mão de obra.

 

Era uma história bem cabulosa realmente, mas o maldito conseguiu fazer com que acreditássemos. Contudo, os dias de glória desse “incrível” jogador estavam contados. Tudo por causa de uma linda garota que mexia com o coração de todos na locadora.

Não vou entrar em detalhes sobre a nossa musa — isso é papo para outra história —, mas em um sábado à noite, a belíssima morena entrou deslumbrante na locadora, fazendo todos os garotos paralisarem em suas cadeiras. Foi um momento mágico.

Foi quase como uma cena de filme. A menina entrando, com seus cabelos esvoaçantes, e todos os meninos babando. Bom, era sempre assim quando ela entrava para jogar. Mas, dessa vez, pela primeira vez, o dito jogador maravilhoso também estava no local.

O início da queda

Assim como nós, o tal super-jogador esqueceu completamente que estava no meio de uma complicadíssima canção de Dance Dance Revolution no nível Hard e que estava se exibindo para a galera.

Com a entrada da nossa musa, ele ficou tão hipnotizado que simplesmente largou o controle e se juntou aos bobões que pareciam nunca terem visto uma linda garota na locadora (confesso que era coisa rara de acontecer mesmo).

O problema é que, quando recuperamos a consciência e olhamos para a TV, o jogo continuava marcando como corretas todas as notas da música, mesmo sem ninguém segurar o controle. Aí, já viu. Foi uma loucura na locadora.

A derrocada

O pessoal gritava, vaiava, xingava. Foi tanta agitação, tanto barulho, que a coitada da menina saiu correndo pensando que tudo aquilo era para ela, quando na verdade o pessoal estava revoltado com o dito jogador.

Como podia ele largar o controle e o jogo continuar apresentando tudo perfect? Era inaceitável. Ladrão, mentiroso, traíra e outros adjetivos impronunciáveis eram ditos aos berros pela galera. Alguns riam, outros só gritavam para agitar. A raiva de alguns era tamanha que eles já estavam ameaçando o cara até de bofetadas, por mais que tudo não passasse de uma brincadeira.

Quando a situação começou a se complicar, o dono da locadora precisou intervir. Ele protegeu o garoto do outro lado do balcão, evitando que os jogadores raivosos partissem para cima dele. Seria uma tragédia, mas era a vontade de todos, inclusive a minha — desculpe, mãe.

A situação se tornou quase incontrolável. Vendo que todos estavam tomados pela ira, querendo fazer justiça com as próprias mãos, o dono da locadora fez ele confessar tudo.

O julgamento

Não deu outra. O sabichão, tremendo, confessou o seu “crime” na frente de todos. Ele disse que usava um tal de GameShark, um disco que permitia códigos, truques e todo o tipo de macete para alterar o jogo, adicionando trapaças que facilitavam, e muito, a vida dele quando ia jogar.

Ninguém ali tinha sequer ouvido falar da existência de algo assim até aquele momento. Era até difícil de entender do que se tratava. O que todos sabiam é que era tudo fraude. Em todos aqueles anos nós fomos enganados por truques. E para explicar melhor, o dono da locadora obrigou o rapaz a mostrar a sua técnica para nós.

E, como vocês bem sabem, o famoso GameShark fazia de tudo: vidas infinitas, barra de life intocável, todos os itens em determinado jogo, pular fases, etc. Tudo para deixar a vida do jogador mais fácil na hora de terminar um game. Uma verdadeira fraude.

O exílio

Todos aqueles anos de glória foram jogados para debaixo de vaias intermináveis. Durante muito tempo, ninguém mais avistou o jogador trapaceiro na locadora. Foram longos dias sem a presença dele, antes carregada de admiração e agora manchada por suas trapaças.

Contudo, acima de tudo e dos seus truques, ele era um grande amigo para todos nós. Por estar sempre presente na locadora, querendo ou não, a maioria já havia se apegado bastante a ele. E por isso, todos estavam sentindo falta do malandro na roda de amigos. Como a raiva pelas falhas que ele cometeu já havia passado, fomos todos até a casa dele para convidá-lo a retornar ao nosso lar.

Saímos quase em caravana da locadora até a casa dos pais dele. Todos estavam animados em tê-lo de volta ao grupo. Chegando lá, chamamos pelo “garoto GameShark” — o apelido já havia pegado. Ele atendeu ao nosso chamado bastante preocupado, talvez temendo por mais uma onda de xingamentos. Mas, para a surpresa dele, estávamos lá em missão de paz, apenas para convidá-lo para uma jogatina por nossa conta para que ele voltasse a se divertir conosco e, assim, esquecer juntos toda aquela cena.

A redenção

O sorriso no rosto foi instantâneo, seguido rapidamente de um pedido verdadeiro e simpático de desculpas. Era assim na locadora, todos se respeitavam e prezavam pela harmonia e pela amizade, mesmo quando as coisas saíam um pouco do controle.

O importante era entender que por trás dos erros — neste caso, usar de mentiras para tentar ludibriar os amigos — existia um amigo. Ele pode ter falhado aquela vez, mas ainda era amado por todos, pois possuía muitas outras qualidades, como o companheirismo, a fidelidade e o carinho por todos.

Éramos uma família na locadora, cada um com suas diferenças, claro, mas sempre se adorando depois de tudo. Quando esquecemos os erros do garoto e passamos a olhar apenas para o lado da amizade, não deu mais para ter raiva dele. E, assim, fomos todos jogar, felizes e sem trapaças — assim esperávamos.

Ps.: O garoto GameShark está nessa foto da locadora do Tadeu.


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Ítalo Chianca

Gamer que cresceu jogando com seus irmãos, lendo revistas sobre games e frequentando as antigas locadoras de videogame, hoje divide o seu tempo livre entre as jogatinas e os textos sobre games que costuma publicar no Jogo Véio e nos seus próprios livros (Videogame Locadora, Os videogames e eu, Papo de Locadora, Game Chronicles e Gamer).

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