Os jogos da série Street Fighter têm sido palco de combates épicos há décadas, transformando seus melhores jogadores em lendas da luta de rua virtual. E quando esses embates ainda não possuíam toda a visibilidade e glória global dos atuais duelos transmitidos online, eram nas locadoras de videogame que os melhores colocavam suas habilidades à prova. E foi entre uma tarde ensolarada e outra depois da escola, que conheci aquele que seria nomeado como o jogador invencível de Street Fighter, capaz de derrotar hordas de jogadores sem perder um único round.
Primeiro round
Minha paixão pelas locadoras de videogame já não é mais surpresa para nenhum de vocês que acompanham minhas crônicas. Os antigos espaços de jogatina juvenil são fonte quase inesgotável de boas histórias e lembranças do tempo de ouro dos videogames. Se você cresceu jogando videogame durante as décadas de 1990 e 2000, dificilmente não tem uma boa história para contar de quando gastava sua mesada na locadora mais perto de casa. Desta vez, a história se passa numa antiga casa de jogos no centro de uma pequena cidade de interior.
Era a locadora do senhor Toinho, famoso comerciante do ramo dos videogames numa cidadezinha do interior desse imenso Brasil. Lugar simples, sem muitas mordomias: uma típica locadora de bairro, meio improvisada onde antes era um antigo galpão de venda de carne, mas que ganhara aspectos aconchegantes depois da sua transformação em “comércio de games”.
Apenas um vão enorme, essa era a visão de quem entrava pelo portão rolante de ferro. Mas bastava se colocar dentro do lugar para ver a magia acontecer. Uma vez lá, parecia que éramos transportados para um novo mundo diferente daquele que estava lá fora.
Eram vários televisores de tubo, todos dispostos em ordem e acompanhados de diversos consoles, entre eles Super Nintendos e PlayStations. Não posso esquecer das paredes do recinto. Essas, por sua vez, eram decoradas com as caixas dos cartuchos de SNES ao fundo e bem atrás do balcão onde ficava o dono do lugar, uma daquelas prateleiras de CDs repleta de caixas de discos do primeiro console da Sony.
Foi entre uma visita e outra à locadora, certas vezes para jogar, outras tantas apenas para encontrar com os amigos no fim de tarde, que comecei a observar um jogador zerar com extrema facilidade todos os jogos de luta existentes naquele lugar.
Implacável
Era simplesmente impressionante assistir ao show que o rapaz dava enquanto jogava seus títulos favoritos de luta. A garotada rapidamente ocupava todos os assentos próximos do videogame. Ele fazia de tudo. Combos devastadores, super especiais, técnicas de defesa e desvio, e dificilmente levava mais que um golpe por round. Além disso, seus dotes pareciam transferíveis de um jogo para o outro.
Quando chegava para jogar, encaixava-se na disponibilidade de consoles. Fosse Super Nintendo ou PlayStation, a escolha era apenas entre os títulos de luta. Lembro claramente das suas habilidades em Super Street Fighter II e em Marvel vs Capcom. Ele detonava os games em qualquer dificuldade, com o personagem que a galera pedia. Era um showman.
A facilidade com que o jovem jogador dizimava qualquer inimigo era de impressionar qualquer outro garoto que apreciasse um bom game, independente do gênero. Aposto que se a inteligência artificial daqueles jogos que ele detonava tivessem uma gota de sensibilidade, os personagens parariam de tentar enfrentá-lo, não tenho dúvidas.
Rei das lutas
Era um massacre. Às vezes ele, num dos seus showzinhos, deixava o oponente no nível mais alto de dificuldade enchê-lo de pancada, restando apenas alguns centímetros de life bar, para depois soltar uma série interminável de combos e especiais que levavam o adversário controlado pela máquina ao chão e a galera que assistia à loucura. Contudo, foi justamente quando a inteligência artificial deixou de interessá-lo e já não trazer qualquer tipo de resistência, que ele resolveu maltratar toda a comunidade gamer existente na cidade.
Vencidos todos os desafios contra a máquina, dezenas de títulos zerados, vimos surgir um jogador insuperável. Seus amigos, aqueles que costumavam assisti-lo jogar, passaram a ser desafiados pelo jogador, de codinome A.J (até nome estiloso ele tem). Acontecia o que já era esperado — não faziam nem cócegas. Suas habilidades eram invejáveis e serviam de motivo para treinos exaustivos dos que ousavam desafiar o mito. Nunca os jogos de luta foram tão populares quanto nesse tempo.
Enquanto muitos desafiantes treinavam às escondidas, A.J continuava a massacrar qualquer um que o desafiasse. Não tinha para ninguém. Logo começaram a surgir os corajosos em busca da glória de vencer a lenda, mas, em vão. Ninguém ganhava.
Imparável
A coisa começou a ficar sem controle. Quando o jovem A.J chegava na locadora, rapidamente o lugar enchia de curiosos e desafiantes em potencial (ou não) de superar o maior lutador de rua virtual da cidade. Funcionava como um ritual. A.J sentava na sua cadeira, pegava o controle e esperava o primeiro sentar do lado e apertar o start para ativar o player 2. Selecionados os lutadores (o do desafiado quase sempre aleatoriamente), era hora da surra.
Enquanto A.J vencia um adversário atrás de outro, uma enorme fila se formava ao seu redor, todos querendo superar seus dotes de luta e ganhar a fama e glória de ser o primeiro a vencer o jogador invencível. Era uma cena inesquecível. Vários garotos em torno de um console, como se fosse uma verdadeira briga de rua, gritando, vibrando e apoiando os lutadores. Infelizmente, o final era sempre o mesmo.
Até então, ainda não havia tomado coragem de enfrentar aquela “máquina” de lutas. Mas, no calor da emoção e observando que o pior que poderia acontecer era ser mais um entre as dezenas de humilhados no Street Fighter, tentei. Mas não fui eu o responsável por derrubar a coroa do A.J, muito pelo contrário, perdia quase sempre de perfect.
Foi justamente nessas tentativas de derrotá-lo que senti na pele o tamanho da sua lenda. Ele era mortal, não lhe deixando respirar, esse era o seu segredo. Com Ken, ele avançava, dava uma rasteira, emendava com um Shoryuken, antes de cair arremessava um Hadouken, para por fim, engatar uma sequência de especiais devastadora, finalizando o round em poucos segundos. Entre voadoras e socos em série, ele desbancava todos os oponentes.
O pesadelo da galera
Lembro, com clareza, dos vários embates com A.J em Street Fighter Ex Plus, do PlayStation. Foram incontáveis derrotas para ele e seu devastador Garuda. Era uma situação inexplicável. Ele voava, desaparecia e aparecia do nada por cima com aqueles espinhos saindo de todo o corpo. Fim de luta em poucos instantes. Isso sem falar no domínio que ele tinha de todos os especiais, de todos os personagens. Até com Zangief ele era insuperável.
Parece que nada era suficiente para vencê-lo. Não pense que éramos todos péssimos lutadores em Street Fighter, muito pelo contrário, até antes dele, os campeonatos eram bem acirrados, sem falar, claro, nas horas de estudos com as antigas revistas de games da época, com suas estratégias, dicas e macetes de cada jogo e personagem.
Muito tempo se passou e nenhum jogador conseguiu vencer aquele que não se devia nomear. Contudo, entre aqueles vários duelos, tardes inteiras de jogatina, muita resenha e convívio, a amizade e até o aprendizado foram eternos. Do ponto de vista gamer, muitos saíram fortalecidos, pois foram forçados a se superar na busca incansável de vencer A.J, inclusive eu, após muitas derrotas, acabei me tornando um grande fã dos games de luta. Contudo, a maior conquista do tempo de lutas com o jogador invencível, foi a amizade.
Unidos pela porradaria
Depois de tantas derrotas e muitas risadas, aquelas tardes de filas de adversários resultaram numa bela amizade. Antes, conversando sobre seus feitos, técnicas e games, depois, transformando-se num convívio entre irmãos. As afinidades foram tantas (Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho, filmes e música), que aquele cara, o A.J, o jogador invencível, é hoje Anderson José, amigo, companheiro e o homem que cantou a música que a minha esposa entrou no nosso casamento, praticamente um irmão.
E foi numa das nossas tantas conversas nos poucos encontros que a vida nos reserva hoje, com tantas obrigações e falta de tempo, que recordamos com carinho e emoção aqueles tempos de jogatina e principalmente os dias onde ele era conhecido como o melhor jogador de jogos de luta da locadora do Toinho. São histórias como essas que me fazem amar as antigas locadoras de games e os videogames em si, pois representam diversão, aprendizado, amizades e felicidades.
Hoje, meio longe dos jogos, A.J, ou melhor, Anderson José, já não é mais aquele jogador invencível de antes, embora continue extremamente difícil de ser vencido. Em nossos poucos duelos, sempre que o venço — poucas vezes, que fique bem claro —, comemoro como se estivesse enfrentando a lenda dentro da locadora do Toinho. Ele pode até achar que estamos apenas jogando mais um jogo de luta, mas no fundo, estou descontando e representando todos aqueles que fizeram fila para a derrota nos tempos de locadora, aqueles que fizeram coro, deixando o placar em humilhantes 60 x 0.
No fim, o que vale são as histórias e amizades proporcionadas pelos games e todo esse fantástico universo, não acha?