Caríssimos, mas extremamente desejados, os videogames eram o sonho de consumo de praticamente toda a geração que cresceu durante os anos de 1990. No meu caso não foi diferente. Apenas a forma como o meu pai conseguiu é que não foi do jeito que eu imaginaria como o ideal.
Garoto sonhador
Quem cresceu durante a década de 1990 sabe como foi intensa a febre dos videogames. Não se falava em outra coisa. Era a grande novidade. Lojas, locadoras, revistas e até propagandas na televisão faziam sempre questão de nos lembrar como eram maravilhosos esses novos “brinquedos”.
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Era segurar um joystick pela primeira vez e nunca mais querer se separar dele. Era um desejo intenso e verdadeiro. Sendo assim, a garotada toda sonhava em ter o seu próprio videogame para jogar todos os dias no conforto de casa.
Lá em casa, o assunto também era o mesmo o dia todo para o desespero da minha mãe. Meus irmãos e eu só falávamos em videogame. Comentávamos sobre os novos jogos da locadora, as revistas que tinham chegado, como seriam os novos consoles e, claro, como seria a melhor coisa do mundo ter um videogame em casa para jogar sempre que desse vontade.
Sem grana suficiente para comprar o próprio console, o jeito era frequentar a locadora. Não que isso fosse ruim. Muito pelo contrário. Eu adorava estar lá. Mas, como não poderia ser diferente, eu fazia aquele choro quase diário: “Ow, mãe, se a senhora comprasse um videogame, eu nem precisaria mais sair de casa”.
Não tinha jeito. O danado do tal de videogame era caro e até difícil de encontrar em lojas por aqui. Eu até já estava conformado com o fato de nunca conseguir ligar um console na TV de casa. Mas foi aí que o meu pai entrou na história e fez o longínquo sonho se tornar um pouco mais real.
O salvador
Nessa nossa infância compartilhada, onde vivemos praticamente as mesmas histórias um do outro, mas em lugares diferentes, é quase unanimidade a posição de nossas mães em relação aos videogames. Segundo elas, videogame estragava a TV, viciava, cegava e gastava muita energia.
Era difícil tirar essa imagem dos videogames da mente de nossas mães. Contudo, nossos pais geralmente não ligavam muito para isso. Pelo menos não o meu. Foi justamente ele que me levou pela primeira vez em uma locadora, além de ser o financiador da minha diversão virtual, já que a minha única receita era a mesada que ele me dava.
Apaixonado por esporte, meu pai respirava futebol o dia inteiro. Ele passava parte do dia trabalhando com futebol (ele era treinador de projetos e escolinhas), outra parte assistindo os programas esportivos e uma parte ainda maior assistindo todas as partidas com transmissão na TV.
Ele vivia intensamente essa paixão nacional. Consequentemente, os filhos também, já que tínhamos apenas uma TV na casa. Chegava o horário do almoço, e lá estava ele, assistindo o Globo Esporte no mesmo horário dos desenhos. Não tinha sossego. Ele passava o tempo todo procurando alguma referência a futebol na televisão. Nós, claro, enchíamos o saco para ele liberar a TV pelo menos um pouco, para podermos curtir os nossos desenhos.
Quase todo dia era essa confusão. Contudo, o que não sabíamos era que todo esse conhecimento futebolístico seria de grande valia para nós.
A aposta
Quem acompanha apaixonadamente futebol tem algumas manias em comum. Entre rituais antes do jogo, uma camisa da sorte, culpar o treinador pela derrota, xingar desesperadamente o juiz e não olhar para a TV na hora das cobranças de pênaltis, as apostas são quase unanimidade.
A cada rodada meu pai e os amigos dele apostavam alto nos seus times favoritos. Era uma tradição. Eles passavam a semana toda discutindo as notícias e o momento de cada time, para, no final, “cantarem” suas apostas. Segundo eles, era uma forma de tornar aquela paixão ainda mais divertida e unir os amigos, que ficavam ansiosos esperando pelo começo dos jogos.
Eu não podia sair com o meu pai no centro da cidade que os amigos deles já gritavam de longe: “aposto R$ 10,00 no Flamengo e ainda lhe dou o empate, Valdo. Bora?” Ele se divertia demais com tudo isso, principalmente pelo fato de que ele ganhava uma bela grana com essas apostas.
Sim, ele dificilmente perdia. Além de entender muito de futebol, ele estudava as partidas, analisando formação, desempenho, sistema de jogo. Claro que a desculpa para passar o dia assistindo futebol era o trabalho dele. Mas, obviamente, tudo aquilo também servia para ter uma base na hora de escolher as apostas. E como o pessoal não sabia de todo esse esquema diário de estudos, perdiam muito dinheiro para ele.
Meu pai era quase imbatível. Justamente por isso, quase todos queriam tentar a sorte com ele com apostas cada vez mais malucas. Foi numa dessas, aliás, que um dos amigos dele resolveu desafiá-lo com uma aposta tentadora: “Valdo, eu escolho 11 times e você 11, do Campeonato Brasileiro. Quem tiver o time campeão ganha R$ 100,00 do outro”.
Meu pai, claro, aceitou a aposta e ainda tirou onda. “Meu amigo, eu escolho só um e o resto é seu. O vencedor ganha R$ 200,00 do outro”. Ah, o maluco aceitou sem pestanejar, rindo sem parar como se já tivesse ganhado a aposta. “Escolha, escolha Valdo. Pode escolher o time que vai fazer você perder essa grana toda”. Confiante, o meu pai escolheu o Corinthians, o seu time de coração. Ah, o apostar era um velho conhecido nosso. Era o dono da locadora que tanto frequentávamos durante toda a década de 1990.
A jornada
O ano era 1999, Fernando Henrique Cardoso iniciava seu segundo mandato como presidente do Brasil, Central do Brasil vencia o Globo de Ouro, os blecautes assolavam o Brasil e o Corinthians jogava para conquistar o seu terceiro título brasileiro, depois de uma excelente campanha em 1998.
Meu pai, claro, estava confiante no time. Não era para menos. Luizão, Edilson, Marcelinho Carioca, Vampeta, Ricardinho, Dida. O Corinthians tinha um excelente esquadrão. Meu pai estava tão confiante e empolgado, que essa foi uma das únicas apostas que ele fez questão de dizer a todos em casa (as outras só ele sabia, para o desespero da minha mãe).
Sabendo da importância dessa aposta para ele, meus irmãos e eu passamos a acompanhar rodada por rodada, fazendo as contas de quantos pontos o time precisava para se classificar entre os oitos, quem pegaria nas oitavas, se jogaria em casa nas quartas, se estaria todo mundo disponível para as semis e, por fim, se venceria a grande final.
Foi um ano inteiro de diversão em frente a TV, torcendo pelo Corinthians e para que o meu pai vencesse a aposta. O prêmio nem era tão grande assim. Mas a aposta já se tornava questão de honra, principalmente com a zueira que o dono da locadora fazia sempre que nos encontrava.
— Diga a seu pai que ele vai ter que vender um de vocês para pagar a aposta, Ítalo.
— Venda sua locadora, meu amigo, porque você tem que pagar ao meu pai. O Corinthians será campeão.
As brincadeiras não paravam. Quando eu chegava para jogar na locadora, já dizia: “acho que hoje eu não vou pagar, pode descontar no dinheiro que você pagará ao meu pai no final do ano”. O dono da locadora dava risadas e já rebatia: “É melhor você pagar dobrado, só assim adianta o pagamento do seu pai”. Era uma diversão só, o que nos fazia acompanhar cada rodada como se fosse a última. Parecia que o ano não ia acabar nunca.
Muito disputado, o campeonato foi bem tenso… Porém, o Corinthians tinha um timaço e acabou ganhando o título. Foi um tremenda festa lá em casa. Lembro de termos saído em passeata, todos uniformizados, cantando “É campeão” sem parar, indo até as casas dos vários amigos do meu pai que fizeram apostas parecidas. Passamos horas recolhendo o dinheiro e celebrando. Até que chegamos a locadora do nosso “rival”.
O rapaz, bem triste, já estava a nossa espera. Cabisbaixo, foi logo dizendo: “Valdo, não tenho como pagar. Não consegui a grana. Não pensava que fosse perder. A locadora não tem dado muito retorno”. Maldito, desafiou o mestre das apostas e agora fica com essa de não ter grana, eu pensava enquanto o meu pai sorria aos ventos. Eles eram bons amigos, e o meu pai já tinha conseguido muito mais do que os R$ 200,00 com outras apostas. Por isso ele disse: “o que você tem aí para me dar ao invés do dinheiro?”.
Essa frase soou como música para mim. Já estava imaginando: ele vai dar uma vale locadora de R$ 200,00 e eu vou passar anos jogando de graça aqui. Nisso eu já comecei a pular, gritar e agitar todos os outros garotos que estavam jogando na locadora. Quando menos esperei, o coro de “PAGA, PAGA, PAGA”, começou a tomar conta do recinto. Foi uma cena inesquecível. Até o meu pai entrou no clima e começou a pular conosco.
O rapaz, vendo que aquilo tudo era realmente importante para nós, principalmente para meus irmãos e eu, além de saber como éramos apaixonados por videogames, fez a proposta. “Valdo, como eu comprei videogames novos de CD, você pode levar um desses de fita para os meninos e completar o valor com alguns jogos. Eu, que já estava pulando e gritando, comecei a rolar no chão, junto com os outros garotos. Foi uma piração total.
“PEGA, PEGA, PEGA”, gritavam todos na locadora. Meu pai não fazia ideia do que era esse tal videogame de fita, nem sabia o valor de um console, mas tomado pela vibração de todos e vendo que estávamos desesperados pelo videogame, aceitou: “Bota numa sacola e entrega aos meninos”. Nossa, eu devo até ter chorado nessa hora.
O rapaz pegou o Super Nintendo, colocou numa sacola plástica preta, tirou dois controles que estavam guardados em uma caixa de PlayStation que serviam de reserva, separou uns jogos e me entregou tudo. Lembro até hoje das palavras que ele disse: “Ítalo, cuida bem dele e não deixe de vir jogar aqui, viu?”
Sonho real
Saímos da locadora correndo, comemorando o título brasileiro e o novo videogame. Chegando em casa foi uma festa só. Gritando e pulando contamos para a nossa mãe sobre o grande feito, que, mesmo sendo sempre contra a ideia de ter um videogame em casa, não resistiu a alegria dos filhos e disse: “Se é assim, vou ajudar o pai de vocês a comprar uma TV nova para a sala e vocês ficarão com essa velhinha para jogar. Meus Deus, aquele dia foi louco demais. Não podia ser real. Corinthians campeão, videogame novo e uma TV só nossa.
Desse em dia em diante, pude me divertir para valer com os meus irmãos e o nosso Super Nintendo. Jogamos incansavelmente Super Mario World, F-Zero, Goof Troop, Contra III, International Super Star Soccer e um monte de outros jogos que alugávamos, pegávamos emprestado com amigos ou, em último caso, comprávamos. Tudo graças as apostas do meu pai com o dono da locadora. E por falar no sujeito, como prometido, continuei frequentando diariamente a velha locadora. Inclusive, até passei um tempo trabalhando com ele. E sempre em dia de pagamento ele dizia: “vou descontar aqui o valor dos jogos que você levou e que valiam mais do que os R$ 200,00 que eu tinha que dar ao seu pai”. Era brincadeira, claro, e sempre caíamos na gargalhada lembrando do dia que eu ganhei o videogame da aposta.