Durante a década de 1990 tivemos várias demonstrações de que simuladores de construção de cidades poderiam ser populares e muito bem-sucedidos mesmo sendo jogos complexos, e a maior prova disso foi com SimCity e suas diversas sequências e spinoffs. Então que tal tentar misturar o estilo com uma pegada histórica? Essa estratégia deu muito certo, primeiro com Roma em Caesar I, II e III, desenvolvidos pela Impression Games e sua publisher Sierra. Para dar sequência eles recorreram ao ditado popular de de se dar um passo para trás para posteriormente dois à frente. Então, voltamos alguns séculos para trás na história, e cá estamos no Egito antigo, com todas suas glórias em Pharaoh. Pronto para reviver as maravilhas do deserto e dar dois passos adiante para a eternidade?
Os primeiros passos
Tudo começa escolhendo o nome de sua família no Egito. Você vai carregar esse nome para sempre, e elevá-lo à glórias inimagináveis durante os cinco períodos históricos que o jogo abrange. Cada período tem uma diferente quantidade de missões, onde o jogo tenta seguir acontecimentos históricos do Egito a partir do gerenciamento das cidades.
Cada cidade começa em um grande vazio, provavelmente em um oásis ou próximo de alguma das margens do rio Nilo. Uma estrada cruza esse território, demonstrando os pontos de entrada e saída da região. Imigrantes irão vir por ela e erguer suas tendas nos locais determinados por você para que construam casas, desde que estejam próximas de ruas. Esse processo é bem parecido com os zoneamentos de SimCity, e rapidamente você começa a ver pessoas puxando suas carroças em direção à área demarcada.
Porém, a semelhança com SimCity acaba aqui. Em Pharaoh, você precisa prover não só serviços básicos como alimentos, água, saúde e educação, mas também prover satisfação para itens de luxo como cerveja, linho, diversão e religião. Ter acesso aos diversos bens e serviços do jogo melhoravam as casas. Isso significava aumentar sua capacidade de moradores e o valor de impostos pagos. Eventualmente você teria nobres egípcios, conhecidos como escribas, morando em sua cidade. Escribas davam um trabalhão pelo tanto de bens que requeriam, mas compensavam por manter os cofres da cidade cheios no final do dia.
Criando uma metrópole egípcia
O dinheiro é empregado na construção de todas as estruturas do jogo, assim como para pagar os trabalhadores de sua cidade. A cidade é a única empregadora, então todos os salários vêm dos cofres públicos. Fora os impostos, você também podia minerar ouro em alguns mapas para obter uma renda extra, assim como tentar lucrar através do comércio com as cidades vizinhas. Essa parte já era um pouco mais complexa, já que dependia de quais bens você podia produzir e também quais que seus vizinhos desejavam comprar.
Mas, voltando para a ideia de prover serviços para a população, cada estrutura nova que você ergue, como uma fonte de água, bazar ou biblioteca requerem mão-de-obra de suas casas para operarem, e algumas vão exigir outros bens também. O bazar necessita de grãos e frutas armazenados para poder distribuir comida para as casas próximas. Uma biblioteca só iria operar com papiros em estoque para dividir os textos com as pessoas, e por aí vaí.
Cada construção gera um trabalhador que vaga pela cidade provendo seus serviços por onde passa. E isso era uma das características mais legais de Pharaoh, já que você podia ver que sua cidade era viva e interagia às suas alterações. Só que ao mesmo tempo os caminhantes se provavam um desafio, já que a cada cruzamento de ruas o jogo recalculava sua rota e eles podiam rumar para um caminho sem o menor sentido. E aí está a maior dificuldade do jogo: manter as ruas da cidade com o mínimo possível de intersecções para poucas construções cobrirem a maioria das casas, ou então construir diversos prédios em um padrão junto com as ruas para que eles se espalhassem cobrindo o terreno. Crescer sem planejamento uma hora ia ter um preço.
Prover serviços e melhorar as casas era legal de se ver, e traziam escribas para a cidade. Escribas não entram na mão-de-obra da cidade, porém continuam demandando serviços, e agora você tem uma falta de gente. Isso vai significar construir novas casas e aumentar a população, que vai precisar de mais bens e serviços para se sustentar. Nisso você forma um ciclo perigoso que podia se tornar insustentável em algum ponto.
Se houvesse alguma falha na distribuição de bens e serviços, as casas iriam regredir, fazendo as mansões de escribas voltarem a ser casas de cidadãos comuns e reduzindo sua capacidade de moradores. Isso podia significar uma massa de gente de volta ao mercado de trabalho bem além do que você precisa, explodindo assim o índice de desemprego em uma cidade ajustada. Ou então as reduções de capacidade iriam cortar trabalhadores de outros serviços, gerando um déficit de gente ainda maior. Um caos de sua cidade estava próximo, e podia piorar ainda mais com uma crise de malária. Sem médicos pela falta de serviços, a doença se tornava descontrolada e matava os moradores em pouquíssimo tempo. Menos trabalhadores, menos serviços ativos, mais involuções de casas. Reerguer a partir dali ficava mais complicado ainda…
O poder do Nilo
Se gerenciar a população já era complexo, imagina se misturado com a gestão de um rio. O Nilo é a fonte de vida do Egito desde seu início, e isso também é retratado em Pharaoh. A maioria das missões do jogo se situam em algum ponto do rio, explorando pesca ou fazendas em suas margens.
De tempos em tempos, o Nilo alaga parte de sua margem, tornando-as inacessíveis. Ao mesmo tempo, essas margens inundadas são fertilizadas e se tornam ótimos lugares para fazendas até a próxima enchente. Esse fenômeno acontece até hoje, e os egípcios inventaram ferramentas conhecidas como “Nilômetro” para medir as cheias do rio.
Aqui também temos um “Nilômetro”, que mede o quão efetiva será a próxima inundação. Inundações grandes geravam boas colheitas, enquanto as fracas diminuíam as colheitas nas fazendas até o próximo ano, e isso significaria gente passando fome por um bom tempo. Nesse ponto só restava rezar a Osíris, deus da agricultura e patrono do Nilo.
Divindades do deserto
Era possível e necessário provar a piedade de sua cidade à cinco deuses do Egito antigo: Osíris, o deus do Nilo; Ra, o deus do reino; Ptah, o deus dos artesãos; Seth, o deus da destruição e Bast, a deusa do lar. Cada cidade possuía um deles como seu patrono, e somente alguns como cultos locais. Assim nem sempre seria necessário erguer templos para todos.
Honrar os deuses significava construir templos e santuários dedicados exclusivamente a um deles. Também era possível organizar festivais periodicamente para cultuá-los. Mantenha os deuses felizes, e eles poderiam conceder bênçãos como receber uma inundação do Nilo melhor do que era esperado, prover alimentos para seus cidadãos ou até proteger sua cidade de invasores. Ao mesmo tempo, os deuses eram vingativos e irritá-los podia significar desde destruir sua cidade com incêndios, reduzir a felicidade das pessoas ou até mesmo trazer inimigos para invadi-la. Então era melhor não brincar com eles!
Monumentos para eternidade
Falando em divindades, algo muito importante para os egípcios antigos era o pós-vida. O corpo e os bens da pessoa deviam ser preservados para serem acessados no mundo dos mortos. Comida, jóias, armas, e até mesmo servos eram guardados em suas tumbas para serem desfrutados no pós-vida. Para manterem os corpos inteiros, os egípcios desenvolveram técnicas de embalsamamento e mumificação; já para guardar suas riquezas construíram grandes e majestosas tumbas, em estruturas que se mantém de pé até hoje. Pharaoh tenta resgatar parte desses marcos da cultura egípcia e se diferenciar de outros simuladores através da construção de monumentos.
Erguer mastabas, obeliscos, templos, pirâmides e esfinges de diversos formatos e tamanhos fazem parte das missões, e são uma tarefa bem complicada de se fazer. Todos requerem quantidades massivas de materiais, e vários trabalhadores especializados para alguma parte do trabalho. Vão desde os carregadores de tijolos e pedras para a obra, aos carpinteiros erguendo plataformas de trabalho e terminando com pedreiros acertando posições de tijolos e esculpindo as construções. Juntar todos os materiais e executar a obra levam diversos anos até o monumento ficar pronto. Era possível ver todas as mudanças durante a construção do monumento, passando uma sensação de realização a cada estágio finalizado e melhor ainda quando pronto.
Defeitos estruturais
Porém, as ótimas inspirações históricas para gráficos e jogabilidade não escondem alguns defeitos. A trilha sonora de Pharaoh não recebeu a devida atenção como o restante por exemplo. São pouquíssimas músicas, todas pouco inspiradas, repetitivas e que passam pouca ou nenhuma animação enquanto ergue sua cidade. O estranho é que fizeram um bom trabalho com os efeitos sonoros. Eles reproduzem os sons das atividades das pessoas na cidade, e aumenta conforme ela cresce com novos prédios.
Outro aspecto mal-aproveitado são os combates militares. O Egito antigo conseguiu diversas de suas glórias em guerras internas e externas, mas isso é pouco visto por aqui. Combates aqui são extremamente simplificados. Você cria fortes para lanceiros, arqueiros e bigas, e portos para navios de guerra e transporte. Mas na hora que um inimigo invadia tudo que você podia fazer era movimentar as tropas. Daí só restava torcer por um bom resultado. Ainda era possível criar muros com torres que deveriam auxiliar os combates e proteger áreas. Só que o alcance e resistência de ambos eram baixos, então faziam pouca diferença.
Legados do Reino
Uma parte muito legal de Pharaoh foi a interação com a história durante as missões. Entender bem o que lhe era solicitado no começo delas era importante para saber quais atitudes tomar. Por exemplo, durante o período do Middle Kingdom duas famílias estão brigando pelo poder. O ideal é você apoiar somente as requisições da família do faraó. Ajudar o inimigo ia lhe impor dificuldades futuras, como limitar comércio de bens para você finalizar um monumento. Falhar ou atrasar alguma requisição durante as missões também afeta o modo que o resto do mundo interagia com sua cidade. Não enviar tropas para ajudar alguém provavelmente significava uma invasão na sua cidade daqui algum tempo, e mesmo ajudando não queria dizer que essa invasão não aconteceria lá na frente. Poucos jogos souberam utilizar eventos randômicos como Pharaoh, ainda mais envolvendo cidades.
Pharaoh provou ser um sucesso comercial mesmo com pequenos defeitos e uma jogabilidade complexa. Graças a isso recebeu uma expansão no ano seguinte, Cleopatra. Nela, somos apresentados a novas missões, construções e temas bem mais difíceis. Erguer o Vale dos Reis e suas diversas tumbas do Egito, levantar duas das maravilhas do mundo antigo em Alexandria (o farol e a biblioteca), lutar contra outros impérios como Roma, Pérsia e Macedônia e até mesmo encarar as pragas bíblicas lançadas por Moisés para libertar os hebreus escravizados no Egito. Todas são bem complicadas até mesmo na dificuldade Very Easy, mas cá entre nós, construir uma cidade com um rio de sangue em volta não devia ser fácil de jeito nenhum né.
Com o sucesso de Pharaoh, a Impressions continuou apostando na ideia de apresentar histórias de outras civilizações clássicas. Com isso acabamos chegamos na Gréca antiga em Zeus. Mas essa história fica pra outra hora.