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Na Guerra de Locadoras travada na minha cidade na década de 1990, quando os jogadores se dividiram entre a Point Games e a Videogame Locadora, eu tive o privilégio de perambular entre os dois espaços e pude conhecer bem os dois principais times dessa acirrada disputa pelo sucesso comercial da cidade e pelo principal ponto de encontro da garotada. Mas, os motivos que me levaram a jogar em cada time foram bem diferentes.

Jornada virtuosa

Depois de iniciar a minha vida gamer na improvisada locadora do senhor Jorge, lá por volta de 1994, precisei encontrar um novo lar, já que o meu velho cantinho de jogatinas estava fechando as portas. Na época, a Point Games e a Videogame Locadora dominavam a praça, ostentando seus aparelhos modernos de diversão para chamar a atenção dos jogadores. Eu, na busca por um novo lar para jogar, entrei logo na primeira que encontrei.

E essa primeira era justamente a Point Games: espaço bem bonito, limpo, moderno e lotado de jogos. Fui fisgado imediatamente por tanto capricho e beleza. Como estava acostumado a jogar em uma locadora improvisada na própria casa do dono, quando entrei em um espaço completamente destinado aos videogames fiquei paralisado e extasiado. Eram tantas TVs, jogos, caixas, acessórios e comidas. Era um sonho.

Já estava decidido: eu passaria o resto da vida ali. E, assim, comecei a jogar por lá. Eu ia praticamente todos os dias. Quando tinha umas moedas, jogava. Quando não tinha, apenas olhava e batia um papo com a galera de lá. Porém, era justamente esse bate papo que não me deixava muito satisfeito.

Os descolados

Explico: O pessoal que frequentava a Point Games era bem mais velho do que eu. Normalmente era uma turma de garotos entre 15 e 17 anos. Eu devia ter apenas 10 anos na ocasião. Uma diferença gritante. Portanto, algumas conversas eram, digamos, constrangedoras para uma criança. E isso não me deixava muito confortável.

A galera gostava de repassar, em detalhes, o que haviam feito na noite anterior. E isso resultava de todo tipo de conversa fiada. Sem falar que era comum ter brincadeiras bem agressivas, como empurrões e puxões de cabelo. Eles se divertiam, era evidente. Mas que assustava a garotada, ah, isso assustava. Contudo, viver entre essas feras era um perigo necessário.

Andar com os mais velhos costumava representar certo status entre as turmas. Significa que você era descolado, maneiro e popular. Sim, andar com os valentões significava que você era um cara legal, pelo menos era isso que eu pensava. Mas, tudo bem. Por maior que tenha sido a ilusão, pelo menos eles me protegiam durante as confusões na rua e na escola. Todavia, aquele não era o meu lugar. Não naquele momento.

Novo lar

Tinha até algumas crianças que também frequentavam a locadora dos “valentões”. Fiz grandes amizades por lá durante esse tempo. Mas geralmente me sentia meio fora de lugar quando a locadora estava tomada pela rapaziada mais velha com as suas “conversas de gente grande”. Nessa fase de insatisfação, conheci novos amigos que não paravam de falar de uma certa locadora em que todos pareciam ser irmãos e o dono os tratava como filhos. Bem, devo ter pensado: é lá que eu quero estar.

Larguei meus jogos — mesmo me arrependendo de não ter voltado para terminar Super Mario RPG, que iniciei e não terminei na Point Games —, deixei de lado o orgulho de ser da turma dos mais descolados e fui ao encontro do carinhoso e promissor lugar. Ou seja, fui experimentar a tão comentada Videogame Locadora.

Meio sem jeito, muito receoso em adentrar o covil inimigo — tratávamos as duas grandes locadoras da cidade como grandes rivais —, fui caminhando pela frente do local, observando os jogadores, dando uma espiada nos jogos, analisando que tipo de comida era vendida por lá, e dando uns sorrisos para o dono, na esperança de ser retribuído com um aceno pelo menos.

Não deu outra. Depois de reparar na minha ronda, o dono da locadora me convidou para conhecer o lugar e todos os outros garotos que se divertiam aos montes em seu comércio. Lá, fui recebido como um antigo conhecido que, apesar de você não conhecer de fato, já é considerado da família. O dono, mesmo sem nunca ter me visto na vida, já foi perguntando quem eu era, se eu gostava de jogar, que tipo de game eu curtia, etc. Até piadas ele fez para mim.

De casa

Eu já estava me sentindo de casa. Ele foi tão atencioso que disse que eu podia escolher um jogo e brincar um tempo de graça para ver se eu gostava mesmo de estar ali. Fiquei simplesmente maluco com tanto carinho. Nem parecia que eu estava em um comércio. Sentei, joguei, me diverti bastante e dei muitas risadas com os meus novos companheiros.

Sim, novos companheiros e amigos. A galera de lá tinha praticamente a minha idade, alguns ainda menores, inclusive. Portanto, conversávamos sobre desenhos, futebol, brincadeiras de rua, aquela coleguinha mais bonita e as próximas peças que pregaríamos durante o intervalo da escola. Tudo fluiu muito bem naquele instante, e assim permaneceu durante muitos anos, tempo em que joguei quase que exclusivamente por lá.

Foi um tempo de muita diversão e aprendizado que passei frequentando assiduamente a Videogame Locadora. Nela, cresci com outros amigos da mesma idade e aprendemos sobre questões da vida — algumas delas com o próprio dono. Marcávamos as peladas do final de semana, ensinávamos outros jovens jogadores, líamos revistas e, claro, jogávamos o tempo todo. Aliás, eu podia jogar Mario sem ser zoado pela turma do Sonic, finalmente.

Mas, como é natural da vida, nós também crescemos, e com isso, passamos a procurar por novas experiências e outros amigos que compartilhem os mesmos interesses. Nesse aspecto, a Videogame Locadora já não parecia mais tão atraente como antes, com suas dezenas de crianças gritando sem parar enquanto jogavam, algumas até chorando.

Mudança de rumo

Aos poucos, conforme fui crescendo, passei a frequentar outros espaços, como ginásios esportivos, festas e praças. Motivado pela vontade de fazer novas amizades, e também para fugir do ambiente excessivamente infantil da escola e da locadora. E, em uma cidade tão pequena como a que eu morava, algumas dessas novas amizades costumavam frequentar a Point Games. Sendo assim, foi inevitável ter que retornar para o meu antigo cantinho gamer.

Os caminhos me levavam até lá. Precisava encontrar um amigo, comprar um refrigerante ou convidar alguém para a pelada. Com isso, fui novamente atraído por aquele ambiente silencioso, moderno e descolado. Agora sim eu me identificava com aquela proposta mais séria e madura. Além disso, eu já não queria mais ter a minha imagem associada à turma dos garotinhos da locadora do outro lado. Eu queria era estar com a turma popular.

E assim foi. No fim, eu só queria saber de jogar na Point Games. Lá, como forma de agradecimento pelo meu retorno, ganhei o direito de ter um Memory Card próprio para armazenar os meus saves nos jogos de PlayStation, além de um desconto no aluguel de jogos de Super Nintendo e ainda podia jogar games mais violentos, como Mortal Kombat, não recomendados para crianças na locadora anterior.

Velha casa

Eu estava numa felicidade só. Rapidamente me deixei levar pelo ambiente mais hostil e agressivo da juventude gamer que utilizava a Point Games. Já estava até gostando de chatear a turma adversária nos intervalos da escola, só para provocar. Mas aí veio um fato que mudaria para sempre a minha relação com a locadora e, inclusive, mudaria o meu interesse pelos videogames. Não, não foi uma linda garota que só jogava na outra locadora. Foi pior que isso.

Enquanto eu gastava toda a minha mesada, e mais tarde o meu “salário” que recebia por prestar serviços lá, alternando entre Final Fantasy VII, Chrono Cross, Xenogears, The Legend of Dragoon, Breath of Fire III e Digimon World 2, o dono da locadora resolveu dividir o meu Memory Card com um maluco — gostaria de colocar aqui todos os desaforos que conheço, mas temo que a minha mãe comece a ler as crônicas — completamente apaixonado por jogos de futebol.

Fúria seridoense

O que ele fez? Simplesmente apagou todas as minhas gravações que passavam de centenas de horas para salvar os gols que ele havia feito em Winning Eleven. Sim, é isso mesmo. Apagou tudo o que eu havia conseguido nesses maravilhosos RPGs em troca de malditos replays de gols sem a menor importância.

Até hoje consigo sentir o ódio que percorreu pelas minhas veias quando vi todo o meu esforço gamer jogado no lixo. Perdi tudo, sem ao menos ter conseguido terminar algum desses jogos. Foi um dos piores momentos que passei em uma locadora até hoje. Queria bater em todo mundo, gritar, chorar. Estava louco.

Para completar, aqueles que se diziam amigos riram descontroladamente de mim naquele momento. Era uma gargalhada só. O pior foi descobrir que foram eles que armaram para mim, colocando o tal maluco para gravar os gols justamente em cima das minhas preciosas gravações, só para me verem pirar. E eu pirei mesmo.

Eu estava tão furioso que falei mal até do dono da locadora. Nem pensei direito. Juntei as minhas coisas e saí de lá direto para a outra locadora, sem ao menos olhar para trás. Nunca mais iniciei outra jornada por qualquer RPG que fosse em uma locadora. Só fui jogar um RPG outra vez no Nintendo Wii, mais de 10 anos depois desse episódio.

E volta o cão arrependido

Então, lá estava eu de volta à velha locadora, que tão bem me acolheu e que tão mal eu a tratei na minha saída. E, do jeito que me receberam, parecia até que eu nunca havia saído de lá, pois fui tratado como um filho que deixa de lado a rebeldia da adolescência e volta a entender a posição dos pais. Voltei a sorrir, a me divertir e até esqueci a raiva que senti na outra locadora.

Voltava, e voltava feliz da vida. Eu estava jogando os meus Marios, Kirbys e Donkey Kongs sem ligar para a zoação dos garotos mais velhos. Estava nem aí que eu não podia mais encher a tela com sangue em Mortal Kombat. Nem liguei quando não tinha mais um Memory Card para chamar de meu. Só queria ser tratado bem e brincar com aqueles que estavam lá pela pura diversão.

Mais uma vez, passei a rir descontroladamente das piadas do dono, conversar sobre desenhos, bater papo sobre games, ler as revistas da época e, por assim dizer, ser criança. Essa, aliás, foi a minha melhor época nas locadoras, pois foi aí que ganhei a confiança do proprietário e passei a trabalhar na locadora, onde vivi histórias absolutamente inacreditáveis.

Tempo de diversão

Eram tempos de muita diversão. E como ninguém deve guardar mágoas, aproveitei a ocasião para visitar meus velhos amigos traíras, pelo menos para pedir desculpas pelo que falei no calor da raiva. Retornando à velha locadora, mesmo com muitas dúvidas, fui surpreendido pelos mesmos garotos do fatídico dia. Confesso que tive vontade de não entrar mais, mas eles foram mais rápidos e correram para me abraçar e se desculpar.

Fiquei chocado. O dono, um velho amigo, ainda lembrava de tudo e pediu mais desculpas do que eu possa me recordar. Fiquei muito emocionado, principalmente quando todos disseram que sentiam a minha falta por lá.

As locadoras eram um reflexo da vida, de seus jogadores. Situações de brincadeiras, pequenas confusões e desentendimentos eram comuns, como em qualquer outro lugar. Mas, nelas também crescíamos, tanto em tamanho, quanto em caráter. E receber esses pedidos sinceros de desculpas foi algo que marcou a minha passagem por esses templos da diversão.

Eternamente

De bem com a vida novamente, e sem qualquer ressentimento dos acontecimentos, pude encerrar os anos dourados das locadoras com extrema intensidade, jogando em todas elas, sem distinção. Encontrando os amigos, batendo papo com os donos e sendo feliz.

Só não me lembre daqueles saves perdidos dos meus RPGs favoritos que tanto tempo e dinheiro eu gastei. Aí eu fico nervoso…


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Ítalo Chianca

Gamer que cresceu jogando com seus irmãos, lendo revistas sobre games e frequentando as antigas locadoras de videogame, hoje divide o seu tempo livre entre as jogatinas e os textos sobre games que costuma publicar no Jogo Véio e nos seus próprios livros (Videogame Locadora, Os videogames e eu, Papo de Locadora, Game Chronicles e Gamer).

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