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A Guerra Fria das Locadoras de videogame

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Imponentes nos grandes centros, escondidas em bairros carentes, filiadas a grandes redes, improvisadas em garagens, as locadoras de videogames foram hegemônicas durante as décadas de 1990 e 2000 como principal espaço da cidade destinado à diversão e ao encontro da juventude. Foram duas décadas de total domínio, retirando cada centavo de uma geração que não resistia a uma boa jogatina com os amigos.

E para conseguirem se sobressair nesse concorrido mercado, os donos de locadora precisavam, assim como qualquer comércio, superar os concorrentes. Foi neste cenário de disputa por novos clientes que vivenciei uma das maiores rivalidades da história das locadoras da minha cidade.

Animosidade

Para uma cidade do interior com pouco mais de três mil habitantes, a minha pequena São José do Seridó, no interior do Estado do Rio Grande do Norte, contava com uma ótima variedade de locadoras. Tínhamos de quatro a cinco locadoras simultaneamente, cada uma com a sua especialidade, diversidade de consoles e jogos, variedade de guloseimas e ambiente. Cabia ao jogador escolher aquela com a qual ele mais se identificava. Contudo, foi durante o final da década de 1990 que a cidade viu uma verdadeira guerra pelo posto de locadora nº 1.

Naquela época, vivíamos a transição entre as gerações 16-bit e 32-bit. O Super Nintendo, principal responsável pelo sucesso das locadoras na cidade, ganhava a concorrência do PlayStation, aumentando bastante a variedade de jogos nas locadoras e diversificando os acervos de cada comércio. Digo isso, pois, no período em que o Super Nintendo reinou, os jogos eram praticamente os mesmos em todas as locadoras.

Com o PlayStation, a palavra da vez era modernidade. Os jogadores, que agora acompanhavam as novidades da indústria de perto através das revistas de videogame, exigiam os novos consoles e seus títulos anunciados nas páginas de publicações como a Super GamePower, Gamers, Ação Gamer e Nintendo World. Com isso, os donos do lugar se esforçavam para conseguir trazer as últimas novidades, provocando uma verdadeira corrida pelos melhores jogos. E nessa disputa, as duas maiores locadoras da minha cidade protagonizavam uma verdadeira guerra.

Videogame Locadora x Point Game

De um lado, tínhamos a “Videogame Locadora”, espaço aconchegante e bem acanhado, cheio de picolés, pipocas, paçoquinhas e doces, com dezenas de games de Super Nintendo e uma infinidade de jogos de PlayStation. Seu dono, um velho amigo, era como um pai para a garotada. Ensinava sobre a vida contando piadas e histórias e se preocupava com o bem-estar de todos.

Sempre atencioso, ele costumava conversar com os meninos e até recepcionava com muita festa aqueles que chegavam pela primeira vez na locadora. Era um ambiente bastante descontraído e carinhoso. Com isso, seu público era majoritariamente infantil, sendo crianças bem pequenas a sua grande clientela.

Do outro lado, estava a locadora “Point Game”, espaço mais sofisticado, moderno, com uma variedade impressionante de jogos de Super Nintendo e PlayStation, consoles novinhos, todo tipo de guloseima, controle rígido do tempo de entrada e saída dos jogadores e muito profissionalismo na relação entre cliente e proprietário.

Dito isso, já dá para imaginar que a maior parte do público era formada por adolescentes e jovens um pouco mais velhos — que contavam, inclusive, com o direito de manterem contas mensais. Além, é claro, da garotada mais nova, que também gostava do ambiente e tentava se enturmar com esse público mais velho.

Nintendo e Sega?

Se pararmos para refletir um pouco sobre as características das duas locadoras, podemos até encontrar certa semelhança entre as duas responsáveis pela famosa Guerra dos Consoles, protagonizada por Nintendo e Sega.

De um lado, tínhamos a Videogame Locadora, mais focada na diversão, com ênfase no público infantil, assim como a Nintendo. Do outro, a Point Games, mais moderna e que voltava as suas atenções para o jovem descolado, mais maduro, de forma parecida como fazia a Sega. E era com a mesma intensidade das gigantes dos videogames que as duas locadoras disputavam o mercado e o coração dos jogadores.

Como falei antes, a cidade é pequena e era ainda menor nessa época. Mas, para complicar ainda mais, as duas locadoras dividiam o espaço central da cidade que, como você já deve ter imaginado, era minúsculo.

Olho no olho

A Point Games, por exemplo, ficava no centro da cidade, bem próxima da praça central, cercada de outros comércios e no exato lugar onde a vida social da cidade pulsava. E, bem do outro lado, em um pequeno espaço no Mercado Público — certa vez, em um prédio maior, mas praticamente no mesmo lugar — estava a Videogame Locadora, num prédio na esquina da mesma rua, virada de lado para sua rival, sendo possível chegar lá em apenas algumas passadas. A distância que as separava era de pouco mais de 15 metros.

Com toda essa aproximação física, era inevitável que os dois donos pudessem ver o movimento da locadora vizinha, ou melhor, de seu rival. Eles permaneciam atentos a quem frequentava qual locadora, os horários de pico, os tipos de jogadores, o tempo que cada cliente permanecia no comércio do outro. Era realmente um clima bem tenso e competitivo. E esse espírito contagiava os seus clientes, que se mantinham fiéis à locadora que haviam escolhido para si.

Cada jogador tinha a locadora de coração. Era quase como um time de futebol. Vestíamos a camisa, defendíamos o dono, seus jogos e os videogames com extrema paixão. Era comum nos intervalos da Escola, por exemplo, encontrar garotos em debates fervorosos apenas para tentar provar que os controles do Super Nintendo da sua locadora eram melhores e a cadeira que ele usava para jogar era muito mais confortável do que a da outra locadora.

Eu mesmo participei de diversas dessas discussões. Algumas, inclusive, só chegavam ao final depois de alguns empurrões e xingamentos, apartados apenas pelo toque final do recreio (por sorte, minha mãe não costuma ler as minhas crônicas).

Sem mistura

Quem jogava na Point Games dificilmente entraria na Videogame Locadora, e vice-versa. E, assim, o mundo dos gamers da minha cidade permanecia dividido. Contudo, como comerciantes que eram, cada dono procurava crescer e lucrar sempre mais.

E para continuar crescendo e lucrando mais é preciso conquistar novos jogadores, ou seja, novos clientes. Em uma cidade pequena, isso significava trazer o cliente do concorrente para o seu lado, já que praticamente todo mundo já jogava. Para completar essa tarefa, diversas estratégias eram utilizadas.

Espiã de casa

Casados, os donos das locadoras reservavam um papel importante para as “Primeiras Damas dos Games” (era assim como chamávamos as esposas dos donos das nossas locadoras). Não raramente, enquanto jogávamos, víamos as senhoras esposas rondando as proximidades das locadoras concorrentes.

Segundo os boatos da época (as senhoras fofoqueiras sentadas em cadeiras de balanço na calçada estavam sempre de olho), elas passavam para ver se a locadora do outro estava cheia ou não e, assim, alertar o marido para que fizesse algo.

 

Outro motivo para essas rondas era procurar por possíveis “traidores”. Ou seja, clientes que por algum motivo estariam jogando na locadora adversária. Como você já deve imaginar, frequentar a locadora adversária era crime dentro das leis gamers da época, praticamente um pecado capital. Ou você costuma ir ao estádio do seu time adversário no futebol?

Esses momentos de ronda, aliás, eram muito esperados pelos garotos que costumavam ir à locadora apenas para conversar com os amigos e esperar por um convite para jogar. Isso porque quase sempre que se avistava a esposa-espiã, o dono do lugar mandava todos os meninos jogarem, de graça, para que a senhora espiã pensasse que a locadora estava lotada de clientes.

 

Era uma agitação só. Todo mundo correndo, pegando jogos, fazendo barulho e esbanjando felicidade. Vendo a cena, as senhoras voltavam agitadas para contar o que viram. O difícil depois era tirar essa galera dos videogames quando o teatro todo já não era mais necessário para o dono do lugar.

Arriscando

Quando a situação começava a pesar para um dos lados (vendas fracas, poucos aluguéis, queda na procura por guloseimas), era preciso apelar para estratégias mais ousadas. Entre elas, estavam as promoções surpresas.

Lembro de participar de várias promoções malucas, como por exemplo: “Jogue o dobro de minutos”; “Aniversariante não paga”; “Alugue na quinta e entregue na terça”; “Alugue três jogos e ganhe um”; “Vença o especialista e pague menos”. Mas, a melhor de todas para mim era: “Zere um jogo e ganhe uma hora.

Ah, que belas recordações eu tenho dessa promoção da Point Games — frequentei as duas locadoras em períodos diferentes, mas isso é assunto para outra história. No dia do anúncio dessa promoção, corri para a locadora, separei todos os jogos de luta de Super Nintendo e PlayStation, regulei as lutas para apenas um round, dificuldade no mais fácil, e sai jogando e zerando tudo em pouco mais de 10 minutos — a velha estratégia de sempre, mas que sempre funcionava.

A prova para ganhar o bônus era simplesmente mostrar a tela de créditos. Como vocês bem sabem, terminar um jogo de luta nessas condições era a tarefa mais fácil desse mundo. Fui acumulando dezenas e dezenas de horas extras até ter tempo suficiente para não precisar gastar minhas moedas por um longo período. Nunca joguei tanto em locadora na minha vida quanto nessa época — para o desespero do dono.

Corrida armamentista

As mais conhecidas e famosas estratégias dos donos de locadoras para entender o que se passava no concorrente e tentar superá-lo era o uso dos espiões. Pois é. Enquanto as esposas passeavam pelos arredores, sem nunca romper a barreira de entrada, os espiões eram jogadores infiltrados no ambiente interno do comércio, prontos para observarem tudo e entregarem seus relatórios aos mandantes.

Não, não era nada tão complexo assim. Na verdade, era uma diversão só. Preocupados em saber o que acontecia do outro lado da rua, cada comerciante selecionava jogadores de confiança para introduzi-los na “zona de guerra”. Os escolhidos eram, geralmente, ex-jogadores da concorrência, selecionados para provarem sua lealdade em solo inimigo.

Eles precisavam entrar normalmente na locadora concorrente, observar a quantidade de jogadores, procurar por possíveis novidades, perguntar por promoções e, principalmente (essa era a principal tarefa), lembrar dos jogos que estavam sendo mais jogados. Caso o título não existisse na locadora de seu comandante, ele teria que lembrar o nome do game para que imediatamente fosse comprado.

Falhas do ofício

Tudo isso devia ser uma operação bem tensa, pois a rivalidade entre as locadoras era imensa. Mas, na verdade, era uma diversão enorme para a criançada, que fazia com a maior inocência do mundo. E era justamente por causa dessa inocência — e da completa falta de domínio da língua inglesa — que essa tarefa de levar o nome dos jogos mais jogados era uma tremenda confusão.

Imagine só pedir para uma criança decorar títulos como Harvest Moon: Back To The Nature, Breath of Fire III, Tony Hawk’s Pro Skater, Syphon Filter, entre outros? Quase nunca era possível decifrar os nomes enigmáticos que resultavam dessa coleta de informações às pressas, fora toda a pressão em cima desses jovens espiões, que quase sempre eram descobertos e precisavam sair correndo das vaias dos outros jogadores. Até hoje dou risada dos nomes que anotávamos quando os meninos chegavam com as novidades.

Tempos de guerra

Foram praticamente vinte anos de disputa entre as duas grandes locadoras da cidade. A cada nova geração de videogames lançada, maior era a pressa para uma das locadoras trazer primeiro o novo console.

Cada um buscava inovar, diversificar seu acervo de jogos, oferecer serviços, produtos, entre outros. Foram ótimos tempos para se viver, pois, nessa busca constante por agradar e conquistar clientes, as locadoras estavam sempre ativas e renovadas. Até os funcionários eram assediados com propostas tentadoras para trabalhar na rival (desculpe, ex-chefe, mas seu rival me pagou quase o dobro para trabalhar lá).

A batalha por novos jogadores era incansável, assim como a rivalidade entre donos, usuários e simpatizantes. Vieram os computadores, as sinucas, os DVDs, os sorvetes. E nada parecia ser o suficiente para os donos das locadoras. Era como se fosse a própria Guerra Fria, ali na minha cidade, com duas grandes potências tentando intimidar o adversário e conquistar o maior número de seguidores possíveis.

Tempos de saudade

Surgiram outros espaços de jogos, mas nenhum fazia frente aos dois gigantes. Infelizmente, assim como em todos os cantos do país, esse tipo de comércio se tornava cada vez mais insustentável e cada um precisou seguir um novo caminho, deixando as antigas locadoras de videogame e a incrível batalha pela vitória nas melhores lembranças de quem teve a sorte de viver essa época tão cheia de boas histórias. Essas, sim, são eternas.


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Ítalo Chianca

Gamer que cresceu jogando com seus irmãos, lendo revistas sobre games e frequentando as antigas locadoras de videogame, hoje divide o seu tempo livre entre as jogatinas e os textos sobre games que costuma publicar no Jogo Véio e nos seus próprios livros (Videogame Locadora, Os videogames e eu, Papo de Locadora, Game Chronicles e Gamer).

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