Década de 1990. Na rádio, ouvíamos Skank, Gabriel, o Pensador, Charlie Brown Jr, Mamonas Assassinas. Na TV, assistíamos Cavaleiros do Zodíaco e Yu Yu Hakusho. Na rua, batíamos bola nas peladas. Nas garagens improvisadas e em prédios adaptados, frequentávamos as recém-criadas locadoras de videogame. E nas bancas de jornal e durante os intervalos da escola, líamos e debatíamos as novidades das desejadas revistas sobre videogames.
É difícil não parar depois de ler esse parágrafo e gastar alguns minutos relembrando das boas histórias de cada uma dessas etapas, desses rituais que se misturavam para dar forma a uma juventude repleta de momentos inesquecíveis. Foi justamente nesse período que conheci os meus melhores amigos, senti as minhas primeiras paixões, descobri os meus hobbies favoritos e transformei, mesmo que de forma inconsciente, os meus sonhos nos primeiros rabiscos de uma futura realidade.
Sonhador
Foi durante a década de 1990, quando comecei a frequentar assiduamente as locadoras de videogame da minha cidade, que passei a me interessar cada vez mais pelos jogos eletrônicos. Pedia para ir ao supermercado ou à padaria para ficar com o troco das compras e até ajudava o meu pai no trabalho para ganhar uma mesada extra. Tudo isso para conseguir algumas moedas e gastar em horas jogando na locadora com os meus amigos e, principalmente, com os meus irmãos.
Com o passar dos anos, os videogames já faziam parte da minha vida e da dos meus irmãos. Ficávamos ansiosos pelo próximo jogo de Mega Man, imaginávamos como seria a próxima geração de consoles e sofríamos para tentar descobrir o caminho correto naquele Final Fantasy japonês. Além de jogar muito, é claro.
E, para suprir toda essa necessidade por informação dos novos gamers, as revistas especializadas em videogames ganhavam força e traziam, com esforço e carinho evidentes, o universo dos videogames para crianças e jovens de todo o país.
Sucesso das bancas
Provavelmente você, que cresceu nas grandes metrópoles brasileiras, deve ter visto — e ainda vê — diversas publicações nas bancas de jornal e livrarias. Naquela época, periódicos como Videogame, Super GamePower, Ação Games, Gamers e Nintendo World eram vistas aos montes e faziam a alegria dos jogadores, trazendo notícias, análises, detonados, dicas e tudo mais. Mas, se você, assim como eu, cresceu numa cidadezinha do interior, deve ter encontrado muitas dificuldades para achar uma dessas revistas por aí nas décadas de 1990 e 2000.
No meu caso, as raras revistas de videogames que apareciam por aqui ficavam nas locadoras, já que a cidade não possuía bancas e nem livrarias. O dono do lugar costumava trazer as publicações quando viajava para comprar jogos. Quando as revistas chegavam, a disputa era tanta, que era preciso encarar uma tremenda fila para conseguir ter acesso.
Infelizmente, a frequência com que essas revistas chegavam até aqui era baixíssima. Por sorte, alguns vendedores ambulantes de jogos passavam nas lojas aos finais de semana e, além de cartuchos e CDs, eles sempre andavam com uma nova revista para utilizarem como base na hora das compras.
Eu, como frequentador assíduo das locadoras na época, cuidei logo de fazer amizade com esses mercadores de sonhos que, ao chegarem para oferecerem novos games ao dono do lugar, me deixavam ler as revistas que eles carregavam. Eu tentava ler tudo bem rápido, pois eles ficavam pouco tempo na mesma locadora. Sem muita prática na leitura, eu sofria um bocado, mas conseguia absorver as informações mais importantes.
De leitor para editor
Precisando ler rápido e muitas vezes até escondido para que outros garotos não vissem que eu estava com as revistas, tive que encontrar uma forma de transmitir o que eu lia para os meus irmãos, pois eles adoravam saber mais sobre os próximos jogos e consoles. Portanto, a maneira que eu encontrei para manter os meus irmãos atualizados foi fazer a minha própria publicação.
Não, eu não criei uma dessas revistas conceituadas que fizeram história no mercado editorial brasileiro. Longe disso. A minha “revista” era feita com as folhas do caderno da escola, lápis grafite, desenhos improvisados, dicas dos amigos e muito carinho.
Tudo começou como uma forma de ajudar os meus irmãos a entenderem melhor as histórias dos jogos, completarem os games que jogavam e se manterem informados sobre as novidades devido à falta de acesso às revistas.
A “minha” revista
Na primeira edição, usei todas as folhas antes dedicadas às atividades de Educação Física para escrever o que eu pensava ser o enredo de Super Mario World. Escrevi praticamente um conto de fadas, onde eu falava de um herói humilde que trabalhava como encanador e havia se apaixonado por uma linda princesa, mas que precisaria provar que é digno de seu amor através de uma jornada por reinos fantásticos contra um monstro que sequestrou a donzela. Pode não ser exatamente a trama que a Nintendo criou, mas era assim que eu passava a história para os meninos.
Outra “coluna” da minha revista era a de dicas. Sempre que eu descobria uma nova passagem secreta ou uma forma mais fácil de passar de uma fase, eu anotava, na locadora mesmo, para passar para os meus irmãos na revista.
Ah, existia até uma folha para as cartas dos leitores. Para escrevê-la, eu conversava com os colegas no intervalo da escola para tirar as dúvidas dos meus dois leitores. Algumas questões eram prontamente respondidas de forma concreta, como a dúvida do mais novo que queria saber se ele poderia jogar Sonic no Super Nintendo. Outras eram respondidas com muitos rumores passados por tios de amigos de amigos que trabalhavam na Nintendo, como as chances de sair um Super Mario World 3 para o Super Nintendo.
Levando a sério
Todos os textos eram feitos à mão nos intervalos entre os desenhos na TV Manchete. Eu passava horas pensando em pautas, criando conteúdo e pesquisando em revistas antigas os macetes que ainda não conhecíamos.
Escrevia sobre a história dos personagens, analisava os últimos jogos que haviam chegado à locadora, entrevistava os melhores jogadores. A cada nova edição, eu tentava me superar para divertir os garotos que, aliás, ficavam ansiosos pela nova edição ao mesmo tempo em que cobravam bastante quando eu não trazia coisas interessantes.
Lembro de uma vez em que eles pediram por uma correção na edição seguinte porque eu havia dito que teríamos um Donkey Kong Country 4 para Super Nintendo, quando, na verdade, tratava-se de Donkey Kong 64 para o Nintendo 64. Tive que colocar retratação na edição seguinte. Demais, não é?
A UltraGamer
Eu lidava com a produção da revista com muita seriedade. Depois de chamá-la de “UltraGamer” (inspirada da UltraJovem, revista de sucesso na época editava pelo amigo Cláudio Balbino), eu usava o caderno de desenho, que tinha folhas melhores e sem as linhas da minha caderneta, para fazer ilustrações para as matérias. Desenhava os personagens e cenários enquanto lia novas revistas para encontrar assunto para o meu público exigente.
Lendo assim, pode até parecer que eu produzia uma revista impecável. Bom, para mim era. Contudo, vale lembrar que tudo era feito com a simplicidade de uma criança que ainda lutava para compreender a própria língua e montar frases com algum sentido. O que valia mesmo era a diversão que eu proporcionava aos meus dois irmãos enquanto brincava de ser editor/redator.
Até hoje, quando jogo alguns clássicos do passado, lembro-me das críticas que fiz na minha revista. Em Harvest Moon, por exemplo, lembro de ter criticado bastante o jogo, perguntando a mim mesmo como as locadoras estavam cheias de fazendeiros virtuais que faziam sempre a mesma coisa, dia após dia. Final Fantasy VII? Foi um dos poucos que dei nota máxima, pois o jogo parecia ser “de outro planeta”. Ah, e Super Mario 64 recebeu um detonado que gastei quase um ano para escrever.
Crise do mercado editorial caseiro
Foram cerca de três anos escrevendo para os meus irmãos, dando risadas, discutindo sobre videogames, sonhando com o futuro do mercado e, de forma despretensiosa, alimentando uma enorme paixão pelas publicações especializadas em jogos eletrônicos. Aos poucos, aqueles rabiscos pararam de ser interessantes para os meus irmãos, que cresciam e já podiam ler as revistas da locadora.
As revistas, aliás, passaram a aparecer com mais frequência do que antes e estavam repletas de imagens e análises dos jogos do momento. Minhas outras tarefas também contribuíram para me fazer largar aquela brincadeira, que já havia cumprido o seu objetivo de levar informação e diversão para a galera lá de casa.
Com o Ensino Médio, surgiram novas prioridades, novas paixões e a UltraGamer foi ficando adormecida. A rebeldia da adolescência sequer me fez querer guardá-las quando nos mudamos. Com a faculdade, a imensidão de trabalhos nem me fez lembrar de que um dia eu fiz, com tanto carinho, uma revistinha. Porém, com a vida adulta, uma hora chega o momento de refletir sobre a vida e experimentar coisas novas.
E, assim, deparei-me com oportunidades surpreendentes, seguindo por um caminho que, embora eu não soubesse, estava sendo trilhado desde quando rabisquei o enredo fantasioso de Super Mario World lá no início da década de 1990.
O destino
Quis o destino, ou melhor, os deuses dos videogames, que, saindo da minha terceira graduação em História, eu encontrasse na academia a escrita sobre os videogames novamente. Para o meu trabalho de conclusão de curso, pesquisei sobre as antigas locadoras, que na época já desapareciam da cidade. Com aquela pequena experiência adquirida em pesquisa e redação, revivi os tempos em que escrevia, a próprio punho, a minha saudosa UltraGamer. Não deu outra: o sentimento voltou mais intenso do que nunca.
Pesquisando, escrevendo e querendo produzir coisas novas, fui selecionado para o portal GameBlast, onde atuei como redator de 2014 a 2016, escrevendo no site e, principalmente, nas revistas digitais GameBlast e Nintendo Blast.
Essa experiência no GameBlast despertou em mim aquele velho sentimento de criança, quando eu produzia a minha própria revista. Escrever sobre games para pessoas que se importam tanto, assim como eu, era uma das coisas que eu mais gostava quando garoto. E agora eu poderia fazer o mesmo para tantos outros gamers que eu sequer conhecia, mas que já me consideravam de casa.
Era isso o que eu gostaria de fazer pelo resto da minha vida, dizia um Ítalo recém-casado, quando começou a receber os primeiros elogios na internet por causa dos textos. Eu estava muito feliz com o trabalho que, para quem não sabe, era voluntário no Blast. Não era dinheiro o que eu buscava. Eu estava atrás de alegria e diversão, algo para fazer com amor.
O sonho retornou
Praticamente todas as semanas, desde o dia 29 de maio de 2014 — quando publiquei a minha primeira matéria (um especial relembrando o jogo Earthworm Jim 3D) —, escrevo algo sobre videogames. Já perdi as contas de quantas prévias, análises, retroreviews, perfis e crônicas eu escrevi. Só sei que me diverti muito com cada uma dessas matérias e espero ter informado e divertido muita gente, assim como fiz com meus primeiros dois leitores, anos antes de ser um redator de verdade.
Se escrever no site para milhares de pessoas já me enchia de orgulho e satisfação, foi com a publicação do meu primeiro texto na revista digital Nintendo Blast que decidi que definitivamente não pararia mais de escrever. Lembro, com muito carinho, quando fui selecionado para escrever o Top 10 de melhores jogos do Sonic em plataformas da Nintendo, na edição nº 57, de junho de 2014. Foi mágico.
No Blast, também consegui colaborar com a revista Nintendo World, uma das mais antigas publicações dedicadas aos videogames no Brasil. Foi a realização de um sonho escrever nas páginas de uma das revistas que mais li na vida. Eu não podia acreditar. Nesse meio tempo, já um completo amante da redação gamer, publiquei dois livros: Videogame Locadora (2014) e Os videogames e eu (2015). Com esses trabalhos, eu consegui imortalizar boa parte das minhas histórias como jogador e tantas outras resenhas que vivi com meus amigos e, claro, meus queridos irmãos.
A nova realidade
Com todas essas experiências, fui agraciado com um novo e maravilhoso convite: fui convidado pela WarpZone para contribuir com os livros e revistas distribuídos para todo o Brasil, que começaram a ser publicados pela empresa em 2016 em parceria com a Editora Sampa. Logo em seguida, veio o Jogo Véio, site no qual colaboro de 2016 até hoje, produzindo textos, revistas, podcasts e mais dois livros: Papo de Locadora (2016) e o querido Game Chronicles (2017), que fiz em parceria com o Eidy Tasaka e mais um monte de amigos.
Seja nos caracteres da internet ou na folha de papel, espero continuar escrevendo com o mesmo carinho de anos atrás com o próprio punho, ou melhor, com o próprio teclado, sobre games para leitores apaixonados que, assim como eu, enxergam os videogames por um ângulo que vai além do simples ato de sentar em frente à TV e jogar. Aqueles apaixonados que vêem nos jogos uma experiência que envolve diversão, lembranças, amizades e, principalmente, sonhos.
Espero contar sempre com vocês aqui, Véios. Enquanto vocês se itneressarem por videogames e revistas, estarei aqui. Escrevendo e lembrando dos jogos que marcaram a nossa vida.
E saber que tudo começou com uma brincadeira…